Por Phelipe Reis | Publicado Originalmente na Sepal
Conflitos interpessoais não são novidades da atual geração e nem exclusividade das igrejas. Em qualquer casa, associação de bairro, partidos ou grandes corporações sempre haverá desentendimentos, afinal, o fator principal para a causa dos conflitos está presente ali: pessoas.
Talvez, por conta de estarmos imersos no mundo digital e nas mídias sociais, parece que os conflitos tomaram outras proporções, ao ponto que qualquer publicação pode ser uma faísca para acender uma fogueira de xingamentos e acusações, inclusive entre evangélicos.
Não deveria ser diferente entre aqueles que se dizem seguidores do Príncipe da Paz? Não deveriam os cristãos exalarem o bom perfume de Cristo e se esforçarem para viver a paz com todos, especialmente entre os da família de fé? Como a liderança pode lidar com isso?
Essas e outras questões foram respondidas por Ageu Lisboa e Miquéas Matos. Ambos psicólogos, com vasta experiência no ambiente evangélico, especialmente entre pastores e líderes, eles são os nossos convidados para esta conversa de fundamental importância para os desafios da igreja hoje. Confira:
Divisão, ódio e intolerância parecem ser características bem marcantes de nossa sociedade. Como isso afeta as relações numa igreja local?
Ageu Lisboa – À afirmação inicial digo: em parte e tristemente, grandes atores públicos e pessoas comuns estão sofrendo e praticando intolerância. A queixa é a mesma em quase todas as nações e povos, expondo um problema ético fundamental: o lugar do outro na minha vida. Acontece que desde sempre costumamos estranhar “toda outra pessoa”. Um primeiro episódio, com valor arquetípico, aconteceu com o primeiro casal humano, ao atuarem movidos pelo desejo de saber e poder autônomo, desconfiando do Senhor. Esse distanciamento de Deus provocou-lhes uma cisão interna, uma outra consciência em si mesmos e estranhamento do outro (Gn 3). Desde então, ao longo dos milênios continuamos atualizando a dialética do amor e do ódio, polaridade psíquica que nos constitui e marca todas as sociedades.
A igreja cristã nas suas origens e mensagem surge com a missão de sinalizar praticamente o Reino de Cristo, de justiça, fraternidade e paz, onde não cabe nenhum preconceito e privilégio. Todos somos pecadores e podemos ser alcançados pela Graça. A igreja tem o potencial de ser comunidade terapêutica para indivíduos e a sociedade, se opera com categorias do Reino de Cristo, instruída pela sua Palavra e exemplo. Para tanto deve se manter livre dos poderes, dos palácios, do dinheiro, da tentação midiática, para ser voz profética, instruidora e pacificadora, sempre com a verdade.
Miquéas Matos – Afeta proporcionalmente a espiritualidade dos membros da igreja. Quando há ensino sistemático das Escrituras com incentivo à vida piedosa e propostas de atividades de integração no contexto cristão o impacto tende a ser menor.
Cabe à liderança perceber tendências e com sabedoria orientar e eventualmente corrigir de forma amorosa, preferencialmente nos estágios iniciais evitando que se inflame no seio da igreja. Em minha experiência percebi que, em algumas comunidades com menor esclarecimento cultural/educacional as intolerâncias e divisões são mais latentes, mas não posso afirmar ser verdade absoluta.
Em situações conduzidas por colegas de ministério relatam ser necessário ações mais enérgicas para acalmar situações gerando desconfortos e até perda de membros da comunidade, deixando marcas profundas por longo tempo.
Quando amamos ao Senhor sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos (Mt 22.37-39), naturalmente o espaço para estes comportamentos é diminuído, pois passa a ser preenchido por amor.
As redes sociais se tornaram a grande arena pública, onde se desenrolam discussões acaloradas, muitas vezes, por causa de uma “simples” opinião publicada. Como o cristão deve lidar com isso?
Ageu Lisboa – Alguém disse que temos muitos influencers pois são milhões os idioters! Expressão dura, reveladora da Babel midiática e nivelamento pela mediocridade massificante. Performances e frases de efeito substituem reflexões fruto de pesquisa, meditação, amadurecimento. Assim, palavras embaladas num quadro e pintura ou música atinge o status de “verdade” e profunda filosofia. Pior quando deliberadamente são criadas ou reproduzidas expressões e memes destruidores, difamadores que contagiam milhões em poucas horas.
O cristão tem o dever de ser testemunha da verdade. Que toda palavra possa ser provada. Não se precipitar em repassar mensagens mesmo que tenha recebido de pessoa famosa ou de líderes. Estes também podem ter sido enganados ou estarem ligados a esquemas ideológicos e de poder sectário. Ok, pode-se compartilhar ideias, estudos, opinar, desde que assumindo a autoria da avaliação crítica ou do apoio a uma proposta e ideia. Não se esconder no anonimato ou simplesmente postar algo sem nada dizer sobre o motivo da postagem. Que tal não sermos simplórios nem perversos, cúmplices de robôs e de manipuladores?
Miquéas Matos – Talvez soe um pouco radical, mas na maioria das vezes a “simples” opinião traz mais prejuízos do que agrega valor, logo, com visão de médio/longo prazo seria melhor não ter publicado. Geralmente, se publica nas redes sociais o que eventualmente a pessoa não consegue dizer no face to face, e, a parte que se sente ofendida sai em autodefesa ampliando o ruído.
O cristão precisa, de fato, viver o amor que pensa viver, e isto em todas as esferas da vida, no mundo físico e no mundo virtual, nos versos das esquinas vida e no metaverso. Em Mt 5.22 Cristo deixa claro que não devemos nos encolerizar contra nosso irmão e nem depreciá-lo. Se a publicação não for para edificar o próximo e confirmá-lo em torno de Cristo, é sábio quem não publica a “simples” opinião na rede social. Coloco a palavra simples entre aspas pois o simples geralmente não tem o mesmo significado para pessoas diferentes.
Qual a sua percepção sobre a polarização ideológica dentro das igrejas e como a comunhão pode ser mantida, apesar das diferentes opiniões políticas?
Ageu Lisboa – Jesus nos mostra como agir em ambiente polarizado e violento. O livro de Marcos revela muito sobre a vida política de Jesus. Em seu tempo conheceu e se relacionou criticamente com grupos políticos religiosos mantendo-se independente, livre e propositivo. Não aderiu aos fariseus, fundamentalistas moralistas, não cedeu às provocações de mestres da lei, não aderiu aos ensinos dos liberais saduceus, confrontou os escribas, não caiu na provocação dos herodianos, apegados ao poder romano. Tinha alguma simpatia pelos retirantes místicos essênios mas viveu nas cidades em meio ao povo e suas necessidades. Em seu círculo tinha zelotes, grupo nacionalista que se rebelava com frequência, mas ordenou que não se levantasse a espada (Lc. 22.51,52). Ele disse; “Meu reino não é deste mundo” (Jo. 18.36), como que dizendo ser outra sua forma de exercício da vida pública, da cidadania política, sua forma de ver o poder. “Que entre vós o maior seja o que serve” … e lavou os pés dos discípulos (Mc. 10. 32-45). Assim questionou o desejo de poder e trouxe a dimensão da comunhão e da partilha e do serviço ao próximo como a melhor prática política.
Miquéas Matos – Está minando a igreja. A polarização é contraditória à comunhão. Precisamos nos lembrar que o objetivo da comunidade de fé vai além das questões que se encerram na vida terrena. Temos nossas opiniões e o direito de expressá-las, mas no contexto de igreja devemos focar nas convergências que nos confirmam na caminhada em direção à Canaã celeste, pautados pelas Escrituras, fazendo leitura e aplicação preferencialmente desarmados de viés teológico e sim com alma sedenta pelo contato com o texto puro, a Palavra que alimenta e direciona. Neste contexto a liderança exerce papel fundamental, inicialmente não tomando partido, mas pautando-se pelas Escrituras e orientando os membros neste sentido. É necessário ensinar que a igreja é um oásis onde encontramos descanso aos pés do Senhor.
Quais habilidades pastores e líderes de igrejas precisam procurar desenvolver para lidar com os conflitos de hoje na igreja local?
Ageu Lisboa – Que busquem entender a lógica de Jesus frente aos ricos, poderosos, gente famosa e soberba. Que leiam crítica e crísticamente a cultura – variando acesso a jornais, filmes, autores, evitando fonte única de informação. Ouvir dissidentes, ler análises de fora do gueto instrui muito. Manter a igreja livre do contágio de políticos. Púlpito não é palanque. Quando orar pelas autoridades constituídas, orar também pelos que sofrem efeitos dos atos das autoridades! Ter atitude corajosa de Natã diante de Davi, se preciso. Ter ouvido de escuta de pessoas que pouco se expressam na comunidade; talvez se sintam excluídas ou tem medo de censuras e exclusões. Quando lidar com conflito de casal ou família ou de membros comuns, dar a mesma atenção e tempo para cada parte, e não prejulgar. Buscar testemunhas e mediadores adequados para cada caso.
Lidar com conflitos e sofrimento emocional de terceiros exige que o pastor tenha consciência de suas próprias vulnerabilidades. Que cuide de si também, além da doutrina. Buscar ajuda de profissionais para seu próprio processo de autoconhecimento e amadurecimento emocional. Apoiar e liberar pessoa idôneas e habilitadas para processos de ajuda na comunidade. Não cair na tentação da onisciência, onipresença e onipotência que espreita tão fortemente líderes.
Miquéas Matos – Imparcialidade, por mais básico que seja este é o primeiro passo. Quando os líderes assumem postura de discrição e moderação dentre outras, como nos orienta o texto bíblico em 1 Tm 3, as chances de acerto aumentam significativamente e não inflama a congregação.
Importante destacar que não é defesa de posturas omissas ou negacionistas, muito pelo contrário, é manter a neutralidade para melhor entendimento das polarizações e buscar meios de proporcionar a conciliação. O escritor aos hebreus apresenta conselho básico e fundamental que é procurar seguir a paz com todos e buscar a santificação (Hb 12.14). Quando pastor/líder vive esta verdade e ensina a comunidade a trilhar neste caminho, os conflitos diminuem e passam a ser tratados assertivamente.
Quais materiais você indica para quem quer aprender mais sobre resolução de conflitos?
Ageu Lisboa – Indico o livro “O Abuso do Poder na Psicoterapia e na Medicina, Serviço Social, Sacerdócio e Magistério”, de Adolf Guggenbühl-Craig, editora Paulus. Também sugiro participar de cursos bem construídos sobre mediação oferecidos por sites jurídicos e de psicologia (link).
Miquéas Matos – Indico o livro “Os 5 Desafios das Equipes”, de Patrick Lencione, editora Sextante. Também é importante participar de cursos específicos que ampliem o entendimento sobre as subjetividades humanas, exemplo, Curso Psicologia Pastoral, realizado no C.E.M., em Viçosa – MG, em parceria com o CPPC.
Por Phelipe Reis | Jornalista e colaborador de conteúdo para o site Sepal.
Ageu Heringer Lisboa – psicólogo, mestre em Ciências da Religião, membro fundador do Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos – CPPC; membro fundador e docente da EIRENE – Associação Brasileira de Assessoramento e Pastoral Familiar; membro da equipe de comentaristas da Bíblia de Estudos Conselheira – SBB/CPPC.
Miquéas Matos – psicólogo, com MBA em Gestão de RH, diretor de Recursos Humanos e Pastor Titular da Igreja Evangélica Assembleia de Deus Unida; e professor no Centro de Treinamento Transcultural Kairós.